Cuidado com o arame farpado...

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se  do sofrimento, perdemos também a felicidade. A dor é inevitável. O sofrimento é opcional.
(Carlos Drummond de Andrade)

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A consulta - Luis Martins

-- Sua aparência é saudável, mas as aparências às vezes enganam. Vamos lá ver: que é que o senhor sente?
-- O que eu sinto, doutor? Não sei dizer direito. É uma espécie de opressão, de angústia, de ansiedade...
-- E o senhor pensa que eu também não sinto? Isto é normal. Normalíssimo. Que mais?
-- Bem, doutor. Eu tenho insônias.
-- E eu não tenho, por acaso? Pergunte ao seu vizinho se não tem também.
-- Eu não me dou com o meu vizinho.
-- É isto: não se dá com o vizinho. Eu também não me dou com o meu. Ninguém se dá com ninguém. Mas não precisa perguntar: eu sei. Seu vizinho não consegue dormir. Ninguém consegue. Isto é normal.
-- Mas, doutor...
-- Eu sei: o senhor anda nervoso, excitado, angustiado... Diga-me: não sente medo? Um medo sem causa, sem nenhum motivo aparente, medo de qualquer coisa que o senhor não sabe o que é?
-- Realmente...Eu estava com vergonha de dizer, mas, desde que o senhor falou, é verdade: sinto,sim.
-- Ótimo! O senhor sente medo. Eu também sinto. Ótimo, torno a dizer. O senhor não tem nada, meu amigo. Está inteiramente são, uma vez que sente medo. Se não sentisse, aí sim, precisaríamos procurar as causas dessa anomalia. Talvez fosse grave.
-- Sabe, doutor? Às vezes, tenho a impressão de que estou ficando neurótico.
-- Claro que está! E eu não estou? E o seu vizinho não está? E todo o mundo não está? E o senhor pensa que vai ficar de fora? Por que? Mas reflita um pouco, meu caro. O senhor vive, eu vivo, toda a gente vive num mundo anormal, sádico, doente, sanguinário, onde a regra é a falta de regras, um mundo hediondo e tenebroso, onde o homem é cada vez mais - e como nunca foi - o lobo do próprio homem. Um mundo de guerras, de massacres, de hecatombes, alicerçado no ódio, na iniquidade e na violência. Acrescente a tudo isso a poluição atmosférica, a poluição sonora, a poluição moral, a degradação dos costumes, a falência dos serviços públicos, o colapso do trânsito, a morte da urbanidade, da cordialidade, da solidariedade humanas. O senhor sente angústia. É natural. O senhor tem medo. Normalíssimo. O senhor tem insônias. Como não tê-las? Meu caro cliente, vá tranquilo: o senhor não tem absolutamente nada. Passe bem. O próximo, por favor?

(16/1/1973)

O inimigo número um - Luis Martins

Amanheci hoje de muito mau humor. Estou danado da vida com um camarada que, sempre que me pega distraído, me faz uma "ursada"; e por mais que ele depois se mostre humilde e arrependido, procurando reparar o mal que me fez, já lhe disse peremptorimente, muitas vezes, que não quero saber de conversas. Não adianta.
Nem desejo vê-lo. Mas é muito difícil, quase impossível, fugir de sua presença incômoda. Ele me acompanha, como uma sombra. E, dia e noite, com o maior descaramento, vem me surpreender nos momentos mais importunos, para continuar a monótona palinódia da sua contrita justificação de pecados. É de amargar.
No fundo, eu nem sei, não é mau sujeito. Mas, nele, principalmente, o que me irrita e exaspera é o seu sentimentalismo baboso, a sua ternura adocicada, a falta de policiamento das suas emoções, a facilidade com que se deixa enternecer, a pueril confiança afetiva que tem nos seus semelhantes, o despudorado cinismo com que põe o seu coração à mostra. Tudo o enternece, extasia e comove. Se ele se mostrasse um pouco mais firme, mais consistente, mais duro, mais sarcástico, mais ferino, mais capaz de ironia, ou mesmo de ódio - talvez eu o suportasse. Mas essa eterna água-com-açúcar - que insipidez enjoativa!
É preciso que todos saibam: eu, de minha parte, não sou sentimental - tenho raiva de quem é. É esse camarada que me leva a esses excessos de indiscriminada afeição pelo próximo, nos momentos em que me distraio e permito que ele entre em cena para, indevidamente, falar por mim.
Por infelicidade, usa o meu nome e tem a minha aparência física. De modo que muita gente me confunde com ele. Mas é - creiam os senhores - o meu inimigo número um. E, na minha opinião (suspeita, porque o detesto) é o indivíduo mais cacete que Deus pôs no mundo. Ainda agora, eu o vi de relance - e quase lhe arrebentei o olho com um soco.
Mário de Andrade escreveu um dia que era trezentos, trezentos e cinquenta. Eu, não. Eu sou dois, apenas. Mas esse "outro" tão diferente de mim, como me dá trabalho e aborrecimentos! Eu sou um homem sério - ele é boêmio; eu sou árido, seco e reflexivo - ele é um lírico descabelado; eu gosto da ordem e do método - ele é um desordenado crônico; eu tenho consciência de que já não sou criança - ele pensa ter ainda vinte anos; eu escrevo crônicas para ganhar a vida - ele rabisca sonetos que mete em minha gaveta; eu sou tímido e reservado - ele aparenta uma desenvoltura que me deixa escandalizado e perpelxo; eu sou ponderado, grave e sisudo - ele é um poeta bissexto; eu medito, com frequência, na morte - ele, cabeça de vento, só sabe pensar na vida, que ama com uma paixão embriagadora e um êxtase apaixonado de adolescente...
Cheguei à conclusão de que não posso deixá-lo à solta. Trago-o, por isso, em cárcere privado, a pão e água. O diabo é que ele, às vezes, burlando a minha vigilância, consegue escapar - e então faz as piores. Mesmo esta crônica, por exemplo, quem a escreveu foi ele.

(1961)



Ciranda dos ventos - Luis Martins


Manhã de opala, carneiros no monte, queixume na fonte, nuvens distantes, estradas barrentas, sombras sonolentas, ciranda dos ventos...Dias perdidos no tempo. Por onde andei, por onde ficaram pedaços esparsos de mim mesmo? Em terras diversas, massapê e asfalto, areia e pedra, ficou talvez  a marca de meu pé, para sempre incrustada na paisagem. Pé anônimo e ignorado, vestígio de presença humana incorporada à indiferença das coisas. Talvez uma velha parede conserve marcas de meus dedos sujos de criança em sua cal; talvez uma porta de hotel apresente um arranhão distraído em sua madeira. Por aí andei eu - e deixei cicatrizes.
Sinto-me espalhado por muitas terras. Sou tudo que ficou de mim. E estou preso, por infinitos e sinuosos fios, a todos esses cenários do passado; marionette que se move manobrada por dedos invisíveis, que estão longe, escondidos na distância do tempo e do espaço.
O que falo, procedo, penso ou sinto, está condicionado pelo que vivi; vestígios dessa presença sutil insinuam-se nos momentos distraídos do sonho.
Ninguém é feito de uma só argila, mas da mistura de muitos barros. Apenas minha aparência física encontra-se no minuto presente. O resto está espalhado por aí.
Recolho diariamente todos esses fragmentos de mim mesmo e exibo-me pelas ruas como uma vitrina de antiguidades. Mas os outros não vêem nada.

(1954)