Cuidado com o arame farpado...

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O inimigo número um - Luis Martins

Amanheci hoje de muito mau humor. Estou danado da vida com um camarada que, sempre que me pega distraído, me faz uma "ursada"; e por mais que ele depois se mostre humilde e arrependido, procurando reparar o mal que me fez, já lhe disse peremptorimente, muitas vezes, que não quero saber de conversas. Não adianta.
Nem desejo vê-lo. Mas é muito difícil, quase impossível, fugir de sua presença incômoda. Ele me acompanha, como uma sombra. E, dia e noite, com o maior descaramento, vem me surpreender nos momentos mais importunos, para continuar a monótona palinódia da sua contrita justificação de pecados. É de amargar.
No fundo, eu nem sei, não é mau sujeito. Mas, nele, principalmente, o que me irrita e exaspera é o seu sentimentalismo baboso, a sua ternura adocicada, a falta de policiamento das suas emoções, a facilidade com que se deixa enternecer, a pueril confiança afetiva que tem nos seus semelhantes, o despudorado cinismo com que põe o seu coração à mostra. Tudo o enternece, extasia e comove. Se ele se mostrasse um pouco mais firme, mais consistente, mais duro, mais sarcástico, mais ferino, mais capaz de ironia, ou mesmo de ódio - talvez eu o suportasse. Mas essa eterna água-com-açúcar - que insipidez enjoativa!
É preciso que todos saibam: eu, de minha parte, não sou sentimental - tenho raiva de quem é. É esse camarada que me leva a esses excessos de indiscriminada afeição pelo próximo, nos momentos em que me distraio e permito que ele entre em cena para, indevidamente, falar por mim.
Por infelicidade, usa o meu nome e tem a minha aparência física. De modo que muita gente me confunde com ele. Mas é - creiam os senhores - o meu inimigo número um. E, na minha opinião (suspeita, porque o detesto) é o indivíduo mais cacete que Deus pôs no mundo. Ainda agora, eu o vi de relance - e quase lhe arrebentei o olho com um soco.
Mário de Andrade escreveu um dia que era trezentos, trezentos e cinquenta. Eu, não. Eu sou dois, apenas. Mas esse "outro" tão diferente de mim, como me dá trabalho e aborrecimentos! Eu sou um homem sério - ele é boêmio; eu sou árido, seco e reflexivo - ele é um lírico descabelado; eu gosto da ordem e do método - ele é um desordenado crônico; eu tenho consciência de que já não sou criança - ele pensa ter ainda vinte anos; eu escrevo crônicas para ganhar a vida - ele rabisca sonetos que mete em minha gaveta; eu sou tímido e reservado - ele aparenta uma desenvoltura que me deixa escandalizado e perpelxo; eu sou ponderado, grave e sisudo - ele é um poeta bissexto; eu medito, com frequência, na morte - ele, cabeça de vento, só sabe pensar na vida, que ama com uma paixão embriagadora e um êxtase apaixonado de adolescente...
Cheguei à conclusão de que não posso deixá-lo à solta. Trago-o, por isso, em cárcere privado, a pão e água. O diabo é que ele, às vezes, burlando a minha vigilância, consegue escapar - e então faz as piores. Mesmo esta crônica, por exemplo, quem a escreveu foi ele.

(1961)



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